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segunda-feira, 29 de junho de 2015

A Bela Adormecida


  
  Era uma vez, na França do século XVI, um pequeno principado, governado pelo então rei Albert-Pierre II. O monarca, que já se encontrava bastante idoso e estava viúvo há quinze anos, criava sozinho o seu primogênito e único filho, o príncipe Leonard, na esperança de que este o sucedesse no trono e se tornasse um governante tão bom e justo quanto o pai.


  O  príncipe vivia praticamente isolado, pois não era certo que convivesse com plebeus. Órfão de mãe e sem conhecer pessoas da sua idade, seria compreensível se ele se tornasse um jovem introvertido e infeliz. Mas ele nunca estava completamente só - ficava sempre cercado por amas, criados e seus animais de estimação exóticos. Passava o dia inteiro estudando e desenhando, sem nenhuma preocupação e recebendo tudo o que queria literalmente de bandeja. Sua vida era monótona, mas muito boa.

  Desde o berço, as únicas pessoas com quem ele podia conversar eram as damas de companhia, senhoras simpáticas cuja função era fazer por ele tudo o que ele poderia perfeitamente fazer sozinho, inclusive banhar-se e vestir-se. Elas eram muito sábias e contavam-lhe histórias maravilhosas para distrai-lo. Também nutriam infinito carinho por ele, e lhe davam conselhos para orienta-lo.

  Porém, o conselho que elas mais repetiam tratava-se, na verdade, de um aviso: "Nobre principezinho, caso saibas o que é melhor para ti, jamais irás até o último quarto da última torre, pois é lá onde a Bela Adormecida repousa."

  O castelo era uma construção enorme, com quatro andares, quatro torres enfileiradas e mais de vinte cômodos espaçosos, tantos que boa parte deles quase não era usada. Uma das coisas que Leonard fazia quando estava realmente entediado era percorrer cada um dos quartos, até suas pernas doerem de fadiga. Mas como ele era um rapaz inteligente e raramente se deixava levar pela curiosidade, nem sequer pensava em se aproximar da última torre, muito menos em ir explorar o seu último quarto. 

  Ninguém nunca lhe explicara sobre essa tal de Bela Adormecida, mas se as damas de companhia o alertavam sobre isso com tanto temor em suas vozes, era sinal de que seria melhor evitar aventurar-se até o aposento proibido. A porta do quarto permanecia trancada desde que ele se entendia por gente, e os habitantes da corte procuravam não mencioná-lo. Não devia haver nada ali além de um segredo esquecido. Quem sabe uma poupança do tesouro real? Aquele mistério nunca realmente preocupou o filho do rei.

  Até que na calada de uma noite, mais especificamente, na madrugada que antecedia seu décimo sexto aniversário, o príncipe acordou em meio à escuridão noturna, e não conseguiu mais adormecer. Alguma coisa invadira seus sonhos e interrompera seu descanso. Mas o que poderia ter sido? Não o latido de seu cachorro, que dormia calmamente em sua própria caminha ao lado da dele. Algo mais significativo. 

  De repente, ele começou a ouvir uma melodia estranha, quase sobrenatural, vinda de algum lugar distante acima dele. Parecia uma valsa tocada em órgão, sinistramente bela. Sem pensar, ele acendeu uma vela em sua mesa de cabeceira e a pegou para guia-lo em seu caminho até a origem daquela música cativante. Leonard ainda não percebia, mas estava hipnotizado, e não poderia voltar atrás nem com muito esforço. Ele subiu lentamente os degraus que o levariam até a infame última torre.

  Quando ele alcançou o ponto mais alto, a música cessou, e ele notou que estava em um corredor que não lembrava de já ter visto antes. Todas as diversas portas nele estavam trancadas, exceto pela última, que estava entreaberta, deixando escapar um rastro de luz esbranquiçada. Ele entrou, com o mesmo ritmo vagaroso e inconsciente.

  No momento em que passou pela porta, ele não pôde ver nada porque seus olhos ardiam intensamente, nem respirar, porque seus pulmões foram acometidos por um ataque súbito e violento de tosse. Aquele quarto não era adentrado há séculos. O ar abafado parecia ter se convertido em camadas e mais camadas de poeira, e teias de aranha percorriam todas as superfícies como algum tipo de tecido. Depois que se recuperou, ele continuou a andar, determinado. Apesar de estar imundo, o aposento tinha um perfume agradável e suave. Como o aroma de flores mortas.

  Como se detectasse sua presença, uma voz incorpórea começou a soar, causando-lhe um sobressalto.

  "Beije-me..." A voz feminina era delicada e doce, mas rouca, como se não fosse usada há muito tempo. Antiga e abandonada, como tudo o mais naquele lugar.

  "Por favor..." Ela continuou a pedir, aumentando cada vez mais o tom.

  Leonard sentia que a voz estava chamando a ele, que estava desesperada por ele. Seus pés se arrastaram em direção à grande cama de dossel localizada no centro do quarto, embora uma outra vozinha, no fundo de sua mente, gritasse para que ele corresse. À medida em que se aproximava, a chama frágil de sua vela iluminava a silhueta de uma moça que se encontrava deitada ali, em uma posição artificial, encarando o teto com as mãos cruzadas gentilmente sobre o ventre, nada normal para uma pessoa que está realmente dormindo.

  "Beije-me..."

  Ela tinha longos cabelos dourados que se derramavam pelas beiradas da cama e vestia um magnífico vestido branco, levemente roído pelas traças. Com certeza seria linda se não tivesse a aparência de um cadáver em decomposição avançada. A visão foi tão perturbadora que fez com que o príncipe despertasse um pouco do transe em que estava. 

  Ele foi capaz de parar por um instante, encarando-a trêmulo ao lado da cama, tentando com todas as suas forças resistir ao impulso de beijar aquela... Morta. Ou era o que parecia. Ninguém lhe disse que o sono da Bela Adormecida era o sono eterno. No lugar dos olhos azuis que ele imaginou que um dia estiveram ali, havia apenas dois buracos enormes e vazios, dos quais insetos rastejavam. Os lábios ressequidos permaneciam firmemente fechados, apesar de que a voz continuava e agora gritava furiosamente o seu nome... 

  "Leonard! Venha para mim! Desperte-me!"

  Quando ele menos esperava, a Bela deixou de ser tão inerte. Ela ergueu bruscamente a mão direita e agarrou seu braço, cravando os dedos sem carne na pele macia dele, e o puxou para mais perto. A dor absurda do apertão fez com que ele derrubasse a vela acesa sobre os lençóis empoeirados, alastrando um fogo que seria impossível de conter.

  Naquela noite, a morada da família real foi inteiramente consumida por um incêndio inexplicável. Dizem que o príncipe Leonard enlouqueceu e decidiu tirar sua própria vida junto com a de todos ao seu redor. As labaredas impiedosas se extinguiram com a mesma velocidade com a qual começaram. Do castelo colossal, sobraram apenas ruínas tristes e enegrecidas. 

  Nos anos que se seguiram, quase nenhuma vegetação ousava crescer no cenário desolado, exceto por uma trepadeira feia e de espinhos gigantes e venenosos, que cercou toda a área como um muro que lâmina alguma conseguia penetrar. A lenda que se formou ao longo dos séculos diz que aquela planta tem a função de proteger o que quer que tenha se mantido lá dentro, em meio aos restos carbonizados. Dizem que a coisa está apenas aguardando seu momento de despertar.

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