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quinta-feira, 19 de junho de 2014

O Motivo Pelo Qual Eu Não Tomo Banho Há 21 Anos


Eu tenho pesadelos nos quais estou encurralado no banho. A tampa do ralo está encaixada, e a água não para de cair sobre mim. A água sobe até os meus tornozelos, até a minha cintura, e então até cobrir a minha cabeça.

A cortina do chuveiro se torna vidro, e meus gritos viram gorgolejos. Uma figura escura pressiona o rosto contra o outro lado do vidro e me observa. Eu imploro, mas ele não me deixa sair. Eu engulo água e me afogo indefeso no meu caixão de vidro.

Eu acordo engasgando.

Eu sei de onde esses pesadelos vêm - eu nunca tenho que pesquisar muito a fundo. O incidente nunca está muito distante no meu subconsciente. Encontrá-lo é fácil.

Superá-lo não é.

Era o verão do meu aniversário de 12 anos quando os Hudsons se mudaram para o outro lado da rua. Três pessoas, sendo uma delas uma mulher realmente velha. Ela era pequenina, frágil, quase esquelética. Seu cabelo era fino e branco, ela era meio desbotada, usava um vestido floral azul - sua cabeça pendia do pescoço e balançava enquanto o homem a empurrava na cadeira de rodas por uma rampa até em casa. Naquela época, eu não podia afirmar se ela estava viva ou morta.

Alguns minutos depois ela apareceu em uma janela no andar de cima, sentada em sua cadeira de rodas. Ela estava encarando meu quarto diretamente, e eu cuidadosamente espiei de trás das cortinas. A sua cabeça estava erguida agora, e ela me olhava fixamente. Apenas olhava, sem mover a cabeça um centímetro.

Eu fechei minhas persianas.

Por dias ela sentou diante da janela. Ela assistia os carros passarem pela nossa estrada suburbana e olhava as crianças correndo pelos seus quintais. Eu nunca via mais ninguém naquele quarto, nunca vi ela se mover daquela cadeira de rodas. De noite eu espiava nervosamente pelas rachaduras nas minhas persianas. A silhueta dela ficava parada naquela janela, com as luzes apagadas, encarando a escuridão do meu quarto. Eu não podia ter certeza, mas eu sabia que ela estava me observando.

As histórias sobre ela se espalhavam rapidamente pelos meus amigos na vizinhança. Diziam que ela era uma bruxa. Que ela era uma boneca. Que, na verdade, ela estava morta. Mas eu sabia que ela não estava morta. Certo, eu nunca a vi sair daquela janela, nenhuma vez. E eu nunca vi a sua cabeça virar. Mas eu sentia os seus olhos se movendo enquanto me estudavam. Eu podia senti-la me observando. Totalmente sozinho no meu quarto, no meio da noite, com minhas persianas fechadas firmemente, eu acordava com um arrepio. Os olhos dela estavam em mim, eu simplesmente sabia.

Eu comecei a dormir no chão. Quanto mais baixo, melhor. Talvez ela não pudesse me ver se eu estivesse no chão.

Eu disse para os meus pais que a velha do outro lado da rua estava me assustando. Eu implorei para que eles falassem com os Hudsons e pedissem para que eles mudassem ela para um quarto sem janelas. Eles riram e me disseram para deixá-la viver seus últimos anos em paz. Ela estava apenas observando a rua, eles disseram, e aquilo provavelmente a fazia se sentir mais jovem e feliz.

"Você vai simplesmente me enfiar em um quarto sem janelas quando eu for velha?" Minha mãe riu. "Me lembre de me mudar para a casa da sua irmã quando eu estiver em uma cadeira de rodas!"

Uma semana depois havia certa comoção na casa dos Hudsons. Eu assisti do meu quarto enquanto o homem corria da casa e abria a porta dupla da sua van. Ele voltou para dentro, e reapareceu alguns minutos mais tardes empurrando a senhora idosa em sua cadeira de rodas pela rampa. Ela parecia ainda mais frágil do que antes. Ela não devia pesar mais de 30 quilos. A sua cabeça pendia para o lado, descansando no seu ombro direito. O seu corpo sacudia na cadeira de rodas.

Mas os olhos dela nunca me deixaram. Me observaram o tempo todo.

O homem a pegou e acomodou no carro. Ele a tirou da cadeira de rodas e enfiou a cadeira no porta-malas. Ele rapidamente sentou no banco do motorista, com a mulher mais jovem sentando no banco de passageiro, e o homem pisou no acelerador.

A cabeça mole da mulher velha ainda me encarava. Ela balançava para cima e para baixo enquanto a van descia pela estrada. Eu estudei o seu rosto. Estava inexpressivo, sem emoção. A língua dela pendia levemente do lado direito da sua boca. Mas os seus olhos estavam nos meus, e eles ficaram ali.

A van acelerou até o fim da rua, e se foi.

Meus pais ouviram as notícias dos vizinhos naquela tarde: a condição da mulher velha estava piorando, e os Hudsons a haviam levado para um tipo de asilo. Ela não voltaria. Eu fui direto para o meu quarto, e olhei para o outro lado da rua. Eu sorri. A janela dela estava finalmente vazia.

Os Hudsons não voltaram no dia seguinte. Nada de van. Naquela noite eu olhei para a janela da velha. Não havia ninguém ali, nenhuma cadeira de rodas. Mas a luz do quarto continuava acesa. Eu me lembro de ter comentado com meu pai o quanto eu achei aquilo estranho, e ele só deu de ombros e disse, "Deve estar em algum timer ou algo assim."

Eu acordei no meio da noite e espiei nervosamente pela janela do meu quarto. A luz daquele quarto ainda estava ligada. De repente apagou, e eu me ajoelhei atrás do suporte da janela. Eu me levantei lentamente e olhei, esperando ver a silhueta daquela pequena, esquelética criatura. Eu observei por 10 minutos, beliscando e forçando meus olhos. Então as luzes piscaram rapidamente e apagaram de novo.

Eu dormi no chão novamente, agarrado ao meu travesseiro.

Eu tive um treino de beisebol na noite seguinte. Quando eu cheguei em casa, ela estava vazia. Meus pais estavam no jogo de softball da minha irmãzinha. Eu fui até o banheiro para me lavar.

Depois de 3 minutos no banho, eu fiquei com frio. O vapor quente estava escapando do banheiro de alguma forma, o que não fazia sentido porque eu havia fechado a porta. Eu limpei o xampu dos meus olhos, virei a cabeça, e ouvi um barulho estranho que me assombraria em meus pesadelos por anos: as argolas de metal da cortina de banho sendo arrastadas pela haste do chuveiro. Alguém estava  abrindo a cortina lentamente.

O xampu fazia meus olhos arderem, e através da espuma eu vi uma figura escura atras da cortina. Dedos compridos, pálidos e ossudos agarravam a cortina enquanto ela se abria lentamente.  Eu instintivamente recuei no banho, e a cortina se abriu completamente.

Lá estava a mulher velha. Eu só olhei para ela por um, talvez dois segundos, mas naquele momento o tempo parou. Depois de todos esses anos eu ainda posso te desenhar uma imagem vívida aquela visão horrível a minha frente. Cabelo branco emaranhado, a loucura nos olhos dela, os ossos salientes através da pele enrugada, completamente nua. Pele cheia de manchas, verrugas espalhadas por todo o seu corpo, seios magrelos pendendo até a cintura. Pelos onde eu não sabia que as pessoas podiam ter pelos.

Ela sorriu grotescamente, e eu senti os azulejos do chuveiro pressionando as minhas costas e a água quente caindo no meu rosto. Na outra mão, a mulher segurava um abridor de cartas.

"August", ela balbuciou. "August, August, August."

Eu passei por ela, derrubando seu corpo raquítico no chão. Eu corri pelas escadas, nu e encharcado. No meu pânico, de alguma forma eu lembrei que estava pelado, e agarrei uma bermuda de uma cesta na lavanderia, derrubando a cesta no chão. Eu a vesti enquanto corria para a porta e saí pela rua, eventualmente chegando na casa do meu amigo.

Quando a polícia chegou, eles encontraram a velha encolhida no chão do banheiro. O chuveiro continuava ligado. Os policiais foram muito legais comigo, me elogiando pela minha bravura. Eu disse a eles o que ela falou para mim - "August" - e perguntou se eles sabiam o que aquilo poderia significar.

"Vai ser agosto em alguns dias." (August, além de um nome, significa "agosto" em inglês.) Um deles deu de ombros. "E você nunca pode entender completamente as pessoas velhas e loucas, filho."

Os Hudsons só vieram para a nossa rua mais uma vez, para buscar suas coisas. Colocaram um aviso de "à venda" ali por alguns dias. Minha mãe disse que eles não podiam culpar os vizinhos pelo que aconteceu. Aparentemente eles haviam levado a velha - a mãe do homem - para uma casa especial em outro estado. De alguma forma, de alguma maneira, a mulher conseguiu escapar do asilo e pegar um ônibus de volta para a nossa cidade. Isso nunca fez sentido para mim - ela era tão velha, tão frágil, tão indefesa. Ela mal podia se mover naquelas semanas em que morou na casa. Como ela conseguiu viajas centenas de quilômetros sozinha?

De qualquer forma, você pode imaginar o que isso causou em mim. Eu não tomo banho há 21 anos. Eu me banhei em banheiras, o que eu acho que não é diferente - ainda é um tubo, e te envolve com água quente e ensaboada. Mas um chuveiro, com a cortina fechada, com água derramando e preenchendo lentamente as paredes - você se perde na sua própria mente durante o banho. Pensamentos te consomem, e a sensação é de uma segurança aconchegante. Por alguns minutos, você está sozinho no mundo. É o seu próprio reino privado e misterioso.

Mas é isso o que deixa o banho perigoso - você está enclausurado, vulnerável, nu.

Você está exposto.

Eu conversei sobre isso com as pessoas - meus pais, um psiquiatra - mas na maior parte das vezes eu tentei empurrar o incidente bem fundo até onde eu não pudesse encontrá-lo. Eu não falei sobre isso com ninguém desde que eu era um garoto - o tempo levou. Apesar dos banhos, eu era bem normal.

Alguns meses atrás, algo dentro de mim estalou. Eu senti a necessidade de re-examinar o incidente, era quase como se uma voz na minha cabeça estivesse me mandando fazer isso. Minha mente queria certeza.

Eu passei horas online em uma noite, tentando encontrar qualquer informação sobre os Hudsons e a senhora idosa. Eu finalmente encontrei o que estava procurando - um obituário da velha. Ela havia morrido há 4 anos. De alguma forma aquele esqueleto ambulante não havia batido as botas por mais 15 anos. A foto no obituário era em preto e branco, de quando ela era uma jovem mulher. Era uma foto dela com o falecido marido no dia do casamento deles.

O nome dele era August.

E ele era exatamente como eu.

Eu desliguei o computador e encarei o monitor por 10 minutos. Finalmente fazia sentido, o porque de ela ter me chamado de August. Porque era estava obcecada por me observar. Talvez ela costumasse escrever cartas para o marido, por isso ela estava agarrada ao abridor de cartas naquela noite.

Por um momento, eu me senti bem melhor. As coisas sempre parecem melhores quando fazem sentido.

"Querido, está tudo bem?" Era a minha esposa.

"Acho que sim." Eu disse.

Eu tomei o primeiro banho da minha vida em anos naquela noite. Eu nem dei um pulo quando a cortina foi aberta e minha esposa entrou. Mas quando ela me abraçou debaixo da água quente, uma pergunta não saía da minha cabeça:

Como a mulher jovem da foto pode ser exatamente igual a minha esposa?

3 comentários:

  1. Perturbador. Absolutamente perturbador. Advinha quem não vai tomar banho hoje???

    Amei o conto, seja bem vinda ao blog. Você escreve muito, muuuito bem, e mexe com umas coisas... afe! Mas, enfim, seus contos são o máximo!

    Bjos, Sayaka (uma das escritoras do blog)

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  2. Obrigada, mas devo dizer que nem tudo o que eu posto aqui é de minha autoria. Algumas creepys, como essa, eu só traduzi. Embora eu já tenha postado várias coisas que eu já escrevi. Espero que esteja tudo bem.

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  3. Paradoxo do tempo bem legal

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