-->

Bem vindo à Família

LPSA

readiscreepy.blogspot.com.br Onde Ler Pode Ser Assustador

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Memórias de um Proxy Pt1



As lágrimas da chuva escorrem pela superfície de vidro da janela melancólica do quarto. A penumbra entristecida dos postes das ruas fantasiam toda a minha vida, encubadas em um só momento. Uma gota de sangue. Uma gotícula de vida que corre pelas suas veias, repletas de hemácias. Seria eu esta gota pérfida? Seria eu um traço de sombra? Seria eu o grito que você exala antes de morrer? Quem sou eu? Sou a face do desencontro. Sou um cadáver despedaçado. Sou uma vítima meio-morta. Eu sou o profeta. Eu trago a boa nova.

É com essa breve reflexão que começo meu diálogo com vocês, meus impuros. Venho aqui pois já não mais vejo motivo em continuar nas sombras. Todos já me conhecem, e as sombras são desconfortáveis. Eu amo a notoriedade. Amo como vocês zombam do meu nome. E vou amar ver a surpresa de vocês.

O Edgar deve ter contado a minha história... mas ele não sabe de tudo. Ele não sabe nem de dez por cento da minha vida. Mas antes de tudo, vamos ao começo. Pois antes de ser conhecido como “Profeta Risonho”, meu nome era Daniel Salles.

Talvez seja frívolo dizer que devíamos começar do começo, porém algumas frivolidades se fazem necessárias nessa complexa arte de viver. Não importa o dia em que eu nasci, nem o ano. Nem eu mesmo sei mais quantos anos tenho. Em que ano estamos? 2013? 2014? 2015? Devo ter no máximo 20. Se lhes parece estranho o fato de eu não ter certeza acerca da minha idade, verão em breve que esse é o mínimo que alguém como eu podia sofrer.

Quando eu era mais novo, e ainda me chamava Daniel, eu tinha um irmão. Era uns três anos mais velho que eu, se chamava Lucas. Morávamos juntos, eu, ele, meu pai e minha mãe, na minha cidade natal, Balneário Camboriú, interior de Santa Catarina. Ele havia sofrido um acidente quando bebê, e vivia numa cadeira de rodas. Nunca lembro bem o que realmente houve. Só lembro da cadeira de rodas.

Éramos bem próximos, ele era um menino engraçado e bem-humorado, sempre fazendo piadas com tudo.

Foi mais ou menos quando ele fez doze anos que o evento trágico ocorreu: Lucas ficou louco. Foi o choque mais esquisito que eu já vi: ele estava na internet, lendo um dos blogs bizarros que ele tanto costumava rondar, quando ouvimos do quarto dele um grito. Toda a família correu, e encontramos Lucas no chão, gritando de pavor. Ele escondia a cabeça com as mãos, seus óculos estavam com as lentes rachadas, e ele parecia tentar se proteger de algo. Seu computador estava com o monitor quebrado, como se ele tivesse metido um soco na tela. Levamos ele pro hospital, pro psiquiatra, mas de nada adiantou: meu irmão estava em um pânico eterno, sempre repetindo sobre um cachorro demoníaco que o perseguia em todos os lugares, até mesmo nos seus sonhos, com um sorriso macabro e uma aura profana.

Pouco antes do Natal, lembro-me que entrava no quarto do meu irmão para chama-lo para jantar. Ele, em sua cadeira de rodas, me olhava com uma expressão de medo puro. Em suas mãos estava o revólver de nosso pai. Como ele pegou aquilo, eu não sei, pois sempre ficava em cima do guarda-roupas do meu pai. Eu estava assustado demais para fazer qualquer coisa, apenas observei em choque o meu irmão levantar o revólver e apontar o cano para a lateral da própria cabeça. Ele chorava, como se não quisesse fazer aquilo... “Lucas... vamos jantar... solta isso, por favor...” eu dizia, inocentemente com meus nove anos de idade. “Ele não vai me deixar em paz... ele não sai do meu quarto... ele não sai de perto de mim...” meu irmão me respondia. “Ele me falou de você... Daniel, me desculpe... você tem um trágico destino te esperando...” e antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele puxou o gatilho. O sangue espirrou na parede do quarto, junto com pedaços do seu cérebro. Por muitos anos essa cena ficou gravada na minha memória. Minha mãe entrou em depressão por vários anos, meu pai também. Até que mudamo-nos para Florianópolis. Passei o resto dos anos evitando todo tipo de contato com a sociedade. Não queria mais me aproximar de alguém para que a pessoa acabasse como meu falecido irmão. Me dediquei então à literatura, e a escrever. E foi assim até os meus catorze anos, quando eu conheci uma jovem que mudou para sempre a minha vida. Era a garota mais linda que eu já havia visto em toda a minha vida. Quer dizer, eu já havia visto muitas garotas bonitas, mas nenhuma se comparava aquela deusa de cabelos negros e olhos verdes. “Como é seu nome?” lembro que lhe perguntei. “Anna” ela respondeu “Anna Karenina”. Ela se interessava pelas minhas poesias, pela minha conversa, e finalmente depois de tantos anos eu senti a real felicidade. Era como se nós completássemos um ao outro.

Até que os sonhos começaram. Aqueles pesadelos pérfidos e agoniantes. Eu sonhava com meu irmão morto vindo me buscar, sonhava que era um garotinho de novo, e um homem muito alto segurava minha mão e me guiava por uma floresta... e me dizia “que sorriso lindo você tem, amiguinho... é tão bizarramente lindo...”

E pelos dias eu tinha aquela sensação de estar sendo observado, ouvia passos no jardim, via vultos nas janelas... a única coisa que me confortava era a presença de Anna Karenina. A única garota que realmente amei, e que consegui consumar esse amor em forma carnal... porém o medo crescia ao meu redor, e tudo piorou uma noite em que meu medo era tão grande que tive que invadir o quarto de Anna no meio da noite para me confortar no seu abraço. Porém seus pais acordaram e eu fui proibido de vê-la. Foi o início da minha perdição. Foi o início da minha loucura.

Comecei a vê-lo... aquele homem alto de terno e sem rosto... via-o em todos os cantos, pela janela, à noite...

Até que um dia ele me levou. Não sei bem pra onde. Nem sei como. Só sei que quando dei por mim estava em uma espécie de prédio abandonado no meio da selva extremamente fria, usando um grosso casaco preto que não era meu, encapuzado, com uma máscara no rosto. Ao meu lado estava uma mulher. Nunca vi seu rosto, então não sei quem era. Eu a chama de “Vespa”. Ela usava um pesado e amarrotado casaco bege. Seus cabelos loiros e compridos viviam emaranhados e sujos. E seu rosto, sempre coberto por uma máscara veneziana branca que cobria seus olhos, usando um gorro marrom- escuro na cabeça. Ela nunca falava nada, porém ao contrário de mim que usava uma faca, ela matava suas vítimas com dentadas. Usava uma espécie de dentadura pontiaguda metálica em sua boca. Em volta de seus lábios havia sempre uma crosta grudenta vermelho-escura, que eu suponho ser sangue seco. Por isso mesmo, não reclamava dela não abrir a boca para mim. Nunca ouvi sua voz. Mas sabia que ela era escrava do homem de terno, assim como eu. Havia algo de errado ali. Ela não parecia humana. Quer dizer, ela era humana por fora, mas como se sua humanidade fosse somente uma casa... por dentro ela era algo muito mais profano... e eu... por que eu não era assim? Por que eu era tão consciente das minhas ações?

Com o tempo fui percebendo que minha consciência não era constante. Pelos dias eu quase não tinha controle das minhas ações, como se outra pessoa controlasse meu corpo. Pela noite... eu tinha um nível de lucidez maior, mas era sempre dominado por desejos de matar, e tentações.

A primeira pessoa que eu matei por ele me marcou.

Eu estava na entrada de um matagal em Florianópolis. Ela estava caminhando pela calçada, tarde da noite. Não lembro quantos anos tinha, mais devia ser uns cinco anos mais velha que eu. Ruiva. Usava óculos, disso eu me lembro muito bem. Andava apressada, olhando pros lados. Com certeza o homem de terno a estava perseguindo faz tempos. Ela passou por mim, mas eu me mantive quieto, escondido nas sombras, e a deixei avançar por algum tempo. Depois a persegui cautelosamente. Não sei de onde surgiu aquela minha habilidade de caminhar sem ser percebido, ou até mesmo de matar a garota. Eu simplesmente... fazia.

A cada passo que eu dava na direção dela, meu transe aumentava. Era como alguém com sede avançando em direção a um copo d’água. Eu estava muito peto, e propositalmente fiz barulho com os pés para que ela me notasse. Ela me viu e abafou um grito, e fez a burrice de correr para dentro da floresta. Eu quase soltei uma risada. Corri para o meio das folhas e me escondi. Ela parou de correr um tempo depois, olhando para os lados, perdida. Eu já não me aguentava mais: saí do meio das árvores, e a derrubei no chão. A sensação da minha faca perfurando a carne jovem e feminina daquela mulher valeu mais do que todos os prazeres desse mundo. Fui esfaqueando-a com força e brutalidade, enquanto ela gritava desesperada por ajuda. Mas ninguém a ouviria. Ninguém a ouviu. Quando ela morreu, iniciei um processo que, por mais que fosse a primeira vez que realizava, me pareceu extremamente familiar. Eu havia trazido alguns sacos plásticos comigo. Removi os órgãos dela, um por um, ensaquei-os, e pus os sãos dentro do corpo oco dela. Depois removi deus olhos e cortei fora sua língua, e a pendurei em cima de uma árvore. A imagem daquele cadáver lindamente trucidado está marcada até hoje em minha mente.

0 comentários:

Postar um comentário

ENVIE SUA MENSAGEM!