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segunda-feira, 27 de abril de 2015

Não Tema a Morte

 
  Antes de tudo, saiba de uma coisa: Nasci e cresci em um lar desnaturado. Meu pai bebia. Minha mãe também. Deve ser por isso que eu nunca cheguei perto de uma garrafa de bebida. Mas este é um fator muito importante na minha história.


  A maioria de vocês deve ter uma ideia de onde isso vai dar. Meu pai costumava ficar bêbado e então, culpava minha mãe por todos os seus problemas. Nessas horas, ela me trancava no quarto enquanto ele... Você sabe o que bêbados agressivos fazem quando se irritam. Muitas vezes, os gritos de minha mãe e meus próprios soluços eram o que acalentavam meu sono.

  Minha mãe passou a beber também para passar o tempo todo entorpecida. Meu pai a agredia enquanto eu era deixado chorando em meu quarto. Acho que depois de um tempo, ele enjoou de seu saco de pancadas habitual. Três dias após meu quinto aniversário, meu pai entrou em meu quarto pela primeira vez. Ele jamais havia feito aquilo antes. Minha mãe teve de segurá-lo para que ele parasse. Naquela primeira noite, ele quebrou meu nariz. Nós fomos ao hospital e eu disse ao médico que havia caído das escadas. Ele pareceu acreditar em mim.

  Virou rotina depois disso. Às segundas, meu pai trabalhava até tarde e nos deixava em paz. Terças e quintas, ele ficava no bar até bem depois da minha hora de dormir. As quartas eram os piores dias. Nas sextas havia insultos, e uns tabefes ocasionais. Nos fins de semana, ele bebia até apagar, lá pelas 16:00. Mas nas quartas... Ele chegava e fazia o serviço completo.

  Se eu bloqueasse minha porta, levava uma dúzia de surras de cinta. Se eu chorasse, recebia um tapa para cada lágrima. Mas se eu ficasse quieto e o deixasse estalar as juntas na minha mandíbula e puxar meu cabelo curto, eu não teria nenhuma história para contar na escola. Eu era um menino valentão e todos me respeitavam quando viam minhas  mãos esfoladas ou hematomas no meu rosto.

  Eu passei dois anos com receio de que se ele me batesse com força demais, eu terminaria partindo desta para a melhor. A Morte me assustava. Numa quarta-feira, eu estava sentado num canto quando o vi. Um homem alto me observando das sombras.

  Inicialmente, pensei que fosse uma mulher. Parecia que usava um vestido preto, cobrindo um rosto escuro. Depois de um momento, percebi que na verdade aquilo era algo como um robe. Um manto, como eu aprenderia anos depois. Eu sabia quem estava vendo. Eu assistia TV e lia livros sobre o assunto. Eu sabia como era a aparência que a Morte devia ter.

  Eu não poderia chorar. Meu pai iria aparecer. Eu iria aceitar calado e o Ceifador me levaria. Mas apesar de toda a dor que havia sofrido ao longo dos anos, eu sabia que queria continuar vivendo.

  Naquela noite eu adormeci no chão, encolhido no mesmo lugar, onde um halo de luz da lua vindo da janela iluminava meus pés descobertos. O Anjo da Morte simplesmente ficou lá parado na penumbra de meu quarto, atrás da porta que levava ao corredor.

  Ele estaria de volta nas noites seguintes. Sempre nas quartas-feiras. Às vezes nas sextas, naquelas em que meu pai estava de mau humor. E à cada maldita noite, ele se aproximava mais. Dois meses depois, ele sentava em cima do baú de brinquedos ao pé da minha cama, de perfil, de maneira que eu sempre captava um vislumbre de seu capuz sombrio.

  "Por que você está aqui?" Eu lhe perguntei, certa noite. Ele me encarou de cima do baú, com os joelhos pressionados contra o peito e os braços envolvendo as canelas, sentado quase em posição fetal, apesar de que não era uma pose amedrontada, apenas entediada.

  "PARA OBSERVAR." Ele respondeu. Eu engoli em seco ao ouvir aquelas primeiras palavras. Eu esperava que sua voz soasse como um murmúrio quieto, como na TV. Mas era algo além. Demonstrava a confiança de um homem forte e corpulento. Ao mesmo tempo em que soava como o tom carinhoso de uma mãe atenciosa. A gargalhada de um louco e a risadinha de uma criança. Me perturbava e confortava simultaneamente.

  "Observar o que?" Ele apenas me encarou. Eu vi seus olhos pela primeira vez naquela noite. Eu sempre imaginei um vazio desalmado ali. Em vez disso, me deparei com olhos azuis em um crânio esbranquiçado.  Naquelas pupilas havia galáxias, eternas e inexistentes, tudo e nada viviam ocultos atrás daquele capuz. Aquelas contradições continuavam me parecendo acolhedoras.

  "VOCÊ, CRIANÇA. ESTOU AQUI PARA TOMAR CONTA DE VOCÊ." A Morte revelou calmamente. Eu achei que ele houvesse mentido para mim e fiquei irritado. Eu perguntei porque ele nunca impediu meu pai.

  "NÃO TENHO PERMISSÃO PARA INTERVIR." Ele disse. Questionei o que ele quis dizer com aquilo. Ele disse que não conseguiria parar meu pai, mesmo se tentasse. Sua função ali era simplesmente me guiar caso meu pesadelo se tornasse realidade.

  A partir daquela noite, o Ceifador se tornou um pai para mim como meu próprio jamais havia sido. Na semana seguinte, ele me trouxe um livro grosso encapado em couro. Nele havia contos de fadas, temas alegres e obscuros em diversas línguas. Ele me contava estórias na voz da minha avó, que faleceu quanto eu tinha 4 anos.

  Quando eu cresci um pouco, ele parou de trazer o livro. Em vez disso, ficava conversando comigo até o amanhecer. Eu lhe perguntava sobre o além e porque as coisas eram como eram. Ele sempre respondia vagamente, dizendo que eu entenderia um dia. Ele me fazia companhia e me confortava até o sol surgir por trás do telhado do vizinho. Então a luz do sol tocaria suas vestes negras, deixando-as de uma claridade cegante. Em seguida, num piscar de olhos, ele havia partido. Eu sabia que ele voltaria na próxima semana, então me arrumava para a escola. Eu nunca me cansava quando a Morte falava comigo.

  A vida seguiu. Quando eu tinha 12 anos, o médico consertou meu nariz pela terceira vez e passou a me fazer perguntas sérias. Três semanas depois, fui levado de casa por uma assistente social e mandado para um orfanato. Inacreditavelmente, um médico conhecido da família ouviu de um colega sobre minha situação e me adotou. Ele e sua esposa estiveram tentando ter um filho por 5 anos e nunca conseguiram.

  Depois daquilo, cresci feliz, porém sem nunca esquecer o que acontecera comigo em minha infância. Eu segui os passos de meu pai adotivo e me tornei um cirurgião. Infelizmente, foi difícil engajar em uma carreira e trabalhei por um período em um necrotério. Em todos estes anos, Morte me ajudou com meu novo emprego e terminei gostando dele.

  Meu coração se partiu quando minha mãe adotiva sofreu um acidente fatal. Eu fui aquele que registrou sua morte. Tive de tirar o resto da semana de folga. Mas naquele dia, a Morte apareceu. Ela se materializou no canto da despensa médica quando fechei a gaveta do necrotério. Segurando sua mão esquelética, estava uma garotinha de cabelos cor de chocolate e olhos verdes. Eu havia visto fotos de família da minha "mãe" e sabia que aquela era ela quando era pequena, com cerca de 7 anos de idade. A visão me magoou, mas o Ceifador fez um gesto tranquilizador e eu soube que ele cuidaria bem dela.

  Durante minha vida, fiz a autópsia de meus quatro pais. Meu pai biológico bateu contra uma fachada de loja enquanto dirigia bêbado. Tive de sair da sala quando vi seu cadáver na maca.  Minha mãe sofreu uma overdose de álcool no ano seguinte. Senti pena enquanto fechava sua gaveta. Meu pai havia ferido sua alma, e ela morreu agonizando por dentro. Minha mãe deixou este plano da mesma forma pacífica como minha outra mãe, mas eu ainda me lembro claramente dos gritos quando a Morte arrastou a alma condenada de meu pai pelo chão, puxando-o por uma coleira de ferro em brasa presa ao seu pescoço. Penso que ele recebeu o que merecia.

  Meu novo pai, aquele homem que salvou minha vida, faleceu há quatro anos. Ele partiu tranquilamente enquanto dormia. Eu me voluntariei para fechar sua gaveta. Assim que eu o fiz, o Anjo da Morte apareceu de mãos dadas com um garotinho de cabelos pretos e olhos azuis.

  Você deve estar se perguntando o porquê de eu ter escrito tudo isto. Na verdade, eu mesmo não tenho certeza da razão. Acho que só quero ensinar as pessoas a não temerem a morte. Ele é uma entidade simpática designada a passar a eternidade cumprindo uma função de merda. E ele me ajudou.

  Com a nova vida que ele me ofereceu, me casei, criei três filhos, duas meninas e um menino que saíram iguaizinhos à mãe. Eu tenho nove netos e dois bisnetos, com o terceiro à caminho. Eu perdi minha esposa ano passado, devido a um ataque do coração. Dói um pouco pensar em como ela não temia a morte. Ela sabia da minha história, assim como você passará a saber a partir de agora. E ela embarcou em seu sono eterno, segurando minha mão.

  Enquanto registro estas conclusões finais, olho pela minha janela. Lá fora, vejo uma figura imóvel do outro lado da rua, com a neve caindo em seu manto preto. Quando se vive o tanto que eu vivi, você aprende a tratar os convidados da maneira certa.

  Agora ele está parado no canto, tão paciente quanto no dia em que o conheci. Assim que termino este post, ponho a garotinha que ele trouxe consigo em meu colo e fecho os olhos. Minha esposa cerra seus brilhantes olhos azuis e descansa a cabeleira ruiva em meu peito. Eu respiro fundo e adormeço. Quando eu acordar, estarei com minha família. Verei meus pais novamente. Verei minha mãe, mais feliz do que jamais foi em vida. Talvez eu até veja os quatro cães que tive ao longo da minha vida.

  "MORTIMER". A Morte me chama do canto. Eu suspiro e digito mais rápido. Se eu puder dizer algumas últimas palavras, gostaria de citar o Culto da Ostra Azul:

  "Não tema a morte, pois, no fim, os verdadeiros monstros são os seres humanos."

Adaptado e traduzido do tumblr sixpenceee.

5 comentários:

  1. Caralho depois dessa eu respeito ainda mais essa entidade

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  2. Isso foi lindo, gostei muito. :)

    Abraços a todos do seu amigo

    Ice Prince

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  3. Cara agr to com uma duvida.

    Se a morte é representada numa entidade de manto preto

    A vida é representado por oque???

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    Respostas
    1. É raro aparecer uma representação da vida, mas costuma ser uma mulher de manto branco.

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