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segunda-feira, 13 de abril de 2015

O Alívio Mortal - Parte 1


  Olá, seres das trevas. Este é um conto em homenagem a Edgar Allan Poe que o grupo "Autores de Medo e Terror" (se quiserem mais informações sobre ele, é só perguntar nos comentários) me desafiou a escrever, há algum tempo atrás. Como sei que tem muitos fãs de Poe por aqui, decidi postar. É sobre a morte misteriosa do escritor, dei uma pesquisada para ficar coerente com os fatos, e é carregado de referências à obra dele. Postarei em três partes, pois é meio longo. Espero que gostem.

  Em uma madrugada particularmente sombria, Edgar se encontrava sozinho em sua casa, uma moradia não tão modesta, que o dinheiro sem significado, resultante da fama como escritor foi capaz de comprar. Era um palacete com vários quartos, grande demais, projetado para abrigar muitas visitas, filhos e empregados. Porém foi ocupado somente por ele e sua falecida esposa. Como as demais mulheres que ele havia verdadeiramente, lamentavelmente amado, sua doce Virginia abraçou a morte cedo demais. E agora ele vivia sozinho naquela casa. Apenas ele e seus fantasmas, que ficavam ainda mais ruidosos em momentos como aquele.


  Ele havia elaborado uma mentira detalhada, apenas para que os admiradores e abutres que o cercavam esquecessem sua existência por um curto período. Havia dito que iria fazer uma viagem curta a uma cidade vizinha, se encontrar com uma donzela inexistente, de quem havia fingido estar noivo. Que piada genial. Todos sabiam que o melancólico poeta preferiria morrer de uma vez antes de permitir a seu coração amargurado sentir algo além de pesar.

   Bem, ele esperava que tal farsa fosse lhe providenciar alguns dias de paz, por meio do total isolamento. Edgar acreditava que era disso que precisava para deter o bloqueio que lhe assolava a mente nos últimos dias. Já havia manchado o papel com todo tipo de horrores, até chegar ao ponto em que a caixa de Pandora que havia em seu cérebro parecia ter se esvaziado. Mas agora ele não escrevia mais somente como uma terapia ocupacional. Agora que suas obras foram finalmente valorizadas, os editores o exploravam, e ele tinha de escrever algo. De preferência algum texto bastante sórdido, que refletisse seu estado de espírito.

  O pobre homem encheu novamente sua taça com o precioso elixir verde, o absinto. Talvez se ele bebesse o suficiente, poderia vislumbrar a célebre fada verde, que lhe traria alguma inspiração. Ou então entrar em coma alcoólico. Nenhuma das probabilidades parecia desagradável. Ele encarou, de testa franzida, a máquina de escrever diante de si, cuja imagem já estava turva e trêmula por efeito da bebida. Cada palavra que tentava digitar lhe soava ridícula e sem sentido quando a relia. Aquilo era curioso, pois sempre escrevia melhor quando estava embriagado.

  Talvez não houvesse jeito. Se ele se isolasse na penumbra do seu quarto mofado por alguns anos, ninguém mais poderia cobrar de seu esforço mental. Porém, até ele reconhecia que aquela era uma ideia doentia. Será que um dia seu talento único seria superado, e surgiria outra infeliz carcaça para os abutres devorarem? Ele não tinha ideia de mais nada. Tomou outro gole que desceu queimando a garganta, se reclinou na poltrona gasta, e suspirou.

  Ouviu uma batida familiar no vidro da janela atrás de si. Desviou os olhos de sua procrastinação por um segundo para cumprimentar o grande pássaro negro que tentava chamar sua atenção. Um corvo. Que irônico.

  “Mau agouro”, ele resmungou, e voltou a se concentrar no trabalho sem progresso, deixando o pássaro que batucava insistentemente, como se tentasse avisá-lo de algo. As letras que teimavam em dançar não facilitavam sua tentativa de escrever com a mesma energia entorpecente dos velhos tempos.  Por falar em entorpecente... Seus pés começavam a formigar. Ele resolveu se levantar e caminhar um pouco por sua colossal sala, guiado pela luz mortiça de um lampião.

  À medida que ele caminhava sem destino, os objetos antiquados que compunham a decoração eram iluminados subitamente pela claridade limitada, como malditas aparições. Um deles brilhava mais do que os outros e por isso prendeu seu olhar. Não era um busto de Atena, como ele descrevia em seu melhor poema.

  Era o mórbido e belo retrato post-mortem de Virginia, retratando a sua aparência exata poucas horas após sucumbir à tuberculose. O rosto de traços delicados estava apenas um pouco mais pálido do que o normal. As longas madeixas cor de mogno se misturavam ao fundo escuro. Poderia estar apenas dormindo, se não fosse pelos cantos de seus lábios ressecados, que começavam a arroxear. O retrato não lhe causava tristeza, afinal era a única coisa que restara da amada. Às vezes conversava com a imagem, para aliviar um pouco a solidão, e imaginava-a respondendo. Mas já estava esquecendo como era sua voz.

  Edgar ergueu um pouco a fonte de luz, para iluminar o quadro melhor e contemplá-lo longamente como havia feito muitas vezes antes. Então percebeu um singelo detalhe: seus grandes olhos negros estavam completamente abertos, brilhando com mais vivacidade do que qualquer artista conseguiria representar. Ele estava confuso demais para julgar a situação, então apenas mirou fundo dentro daqueles saudosos olhos. Talvez fosse um de seus raros sonhos felizes. Ele levantou sua mão esquerda, que ainda segurava a taça de bebida, em um gesto de tintim.

  “Um brinde à vida, meu amor!” Ele disse ao objeto não tão inanimado, antes de sorver um gole generoso e cair em uma gargalhada ensandecida, mas prazerosa. Quando voltou a olhar para a pintura, a doce ilusão foi quebrada. O negro das pupilas de Virginia se espalhou por toda a parte branca, dando-lhe um aspecto infernal, enquanto ela abriu um sorriso vermelho, coberto pelo sangue que ela havia tossido torrencialmente antes de dar o último suspiro. Aquilo não era mais a sua amada.

  Edgar se afastou do retrato macabro com um grito lancinante de terror. De repente, havia se tornado um de seus personagens. Virou a cabeça num espasmo e foi andando cambaleante de volta para o escritório, com a certeza de que estava sendo seguido. Precisava registrar aquilo que havia acontecido. Que conto incrível daria. Não seria a primeira vez que ele se aproveitava de seus delírios para escrever algo inédito. Nenhuma pessoa mentalmente sã conseguiria descrever aquelas atrocidades perturbadoras com a mesma precisão e realismo.

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