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segunda-feira, 4 de maio de 2015

O Alívio Mortal - Parte 2 (Final)


  Antes de iniciar a leitura, certifique-se de ter lido a parte 1.



  Quando ele finalmente avistou a máquina de escrever, e seus dedos esquálidos alcançaram as teclas, ele se deparou com mais uma surpresa: o papel já estava preenchido. Mas não com as suas palavras. Alguém havia simplesmente ido até lá durante sua ausência e digitado algumas linhas para ele. Ou talvez tenha sido ele mesmo, e em meio ao seu torpor, ele nem sequer percebeu. Se esforçando para focar a vista embaçada, ele tentou ler as palavras misteriosas:


  “Olá, Edgar.
Lembra-se de mim?
Talvez tenha preferido apagar de sua mente com uma boa dose de absinto. Mas nem a morte foi capaz de manter para sempre nosso segredinho.
Reynalds descobriu sobre o plágio.
Ele está mais vivo e impiedoso do que nunca.
E ele te vê.
Se eu tivesse a infelicidade de me encontrar em sua situação, procuraria esconder minha identidade. E fugir. Rápido.
Condolências de um velho amigo.”

  Edgar arregalou os olhos e observou em volta atentamente. Se Reynalds o via, ele deveria ser capaz de flagrá-lo também, certo? Mas tudo com o que se deparou foram sombras que se moviam em sua direção, como em uma dança lenta e macabra. No meio dela, os olhos luminosos de um gato preto. O animal saiu de sua camuflagem na escuridão e pulou direto no rosto de Edgar, cegando-o ainda mais por um momento. 

  Demorou para que ele conseguisse se livrar do gato demoníaco, mas antes, a criatura conseguiu arranhar sua pele e esfrangalhar sua camisa o suficiente para fazê-la parecer os trapos de um mendigo. Edgar não tinha um gato. Aquela coisa se materializou ali como uma aparição. Mas àquele ponto, nada mais o surpreendia. O que ele precisava fazer era seguir o sábio conselho que o desconhecido havia lhe dado e fugir enquanto ainda tinha controle de suas pernas bambas.

  Ele correu desorientado, pela escuridão, em direção do que pensava ser a porta da frente. O estranho era que ele não tropeçava em nada. Parecia estar correndo pelo túnel da transição entre os vivos e os mortos, aquele que os moribundos diziam ter uma luz ao fundo. Mas não havia luz alguma. Apenas crescente breu, no qual ele podia ver projeções brilhantes de rostos que já foram familiares, mas contorcidos em expressões simiescas de dor, enquanto urravam seu nome, chamando-o para se unir a eles.

  De repente seu corpo se chocou conta algo sólido e frio, que o desequilibrou e fez com que ele caísse sentado no piso de carpete encardido. Ele olhou, esperando se deparar com a silhueta de alguma mulher semimorta que passou dias enclausurada em um caixão, durante uma crise de catalepsia. Mas era apenas... A porta. Estava entreaberta, o que era uma sorte, pois ele podia jurar que a cabeça de leão talhada na maçaneta tentava mordê-lo.

  A noite lá fora estava silenciosa, ainda conservando o calor agradável do dia de verão que morrera. Mas se encontrava completamente escura, assim como sua moradia abafada. Sem estrelas, nem sinal da lua, apenas aquela sufocante escuridão. Talvez o gato tivesse cegado Edgar. Ele nem teria como saber. Mas isso não importava. Ele tinha de arranjar um disfarce à qualquer custo. Nem que para isso precisasse tirar a vida de um homem.

  Oculto pela penumbra, ele esperou até que a primeira pessoa passasse. Então puxou a pistola antiquada que sempre trajava consigo, supostamente para a sua segurança, ou caso em um surto ele decidisse finalmente dar fim à sua amarga existência. Mesmo naquele estado de delirium tremens, ele ainda conseguiu dar um tiro certeiro, na região da veia aorta. Tratou de arrancar as vestes do pobre rapaz antes que ficassem por demais empapadas em sangue, vestiu-as por cima das roupas dilaceradas, e voltou a correr cambaleante.

  Com sua aparência lívida e doentia, os olhos quase saltando para fora das órbitas e o cabelo mais desalinhado do que o de costume, ele duvidava que alguém reconhecesse o escritor educado e formal que ele havia sido algumas poucas horas antes. Especialmente vestindo roupas que nem ele mesmo sabia a quem pertenciam. Mesmo fora de perigo, só parou quando seus joelhos se recusaram a carrega-lo mais um centímetro. Desabou sob um velho banco de praça e ficou encarando a imensidão celeste com um sorriso fascinado em seus lábios. Finalmente podia ver as estrelas. Fossem alucinação ou não, não fazia diferença. Afinal... O que tinha sido sua vida, além de um sonho ruim?

  Um conhecido de Edgar passou casualmente por ali, quando os primeiros raios de sol despontavam timidamente no céu noturno. Quase não reconheceu o colega, que mais parecia um mendigo inconsciente devido a uma overdose de ópio. Seus olhos ainda estavam semiabertos, piscando compulsivamente, com horror a luz solar. Quando o homem se aproximou, curioso, e chamou Edgar pelo nome, em um sussurro hesitante, o escritor agarrou seu pulso com violência. Pelo brilho insano em seus olhos injetados de sangue, podia-se afirmar que ele via ali algo que não existia.

  “REYNALDS! Reynalds. Reynalds. Reynalds...”.

  Após proferir repetidamente aquelas palavras desconexas, desfaleceu completamente, e seu fiel amigo tratou de carrega-lo nos braços fortes até um hospital próximo. Lá chegando, não havia muito que os médicos pudessem fazer pelo moribundo. Ele se encontrava incapaz de responder às muitas perguntas. Por fim, pediu papel e caneta, que lhe foram entregues com prontidão. E escreveu, em letras garranchosas, suas últimas palavras:

  “Está tudo acabado: escrevam que Eddy já não existe.”


  Fechou os olhos, finalmente sentindo-se absolutamente em paz. E esperou Virginia vir busca-lo.

2 comentários:

  1. Muito bom,parabéns a leitura prende a atenção do inicio ao fim

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    Respostas
    1. Obrigada! Fico feliz que tenha gostado. E que nome interessante você tem.

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