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segunda-feira, 14 de setembro de 2015

À beira-mar



Inspirado no poema "Annabel Lee" de Edgar Allan Poe.

  Tenho 40 anos de idade, quatro décadas inteiras perdidas em plena amargura e desgosto. Portanto posso lhe afirmar, apenas uma vez em minha vida conheci o amor. E tenho certeza, nunca mais terei sequer um vislumbre dele. Ainda assim, encontro-me alegre, pois sei que em breve este sofrimento inexorável há de se acabar.

 Quando o anjo sanguinário da tuberculose veio me informar de que meus dias logo teriam seu fim, decidi partir em viagem para poder morrer no mesmo lugar onde nasci - nesta insignificante ilhota no sul da Irlanda. Aqui só existem duas coisas que valem a pena serem mencionadas: o frio e o mar.

  Este pequeno e gelado reino à beira-mar foi o cenário no qual passei os doces e ligeiros anos de minha infância. Pouco mudou na paisagem - mas meu antigo lar parece mais solitário do que costumava ser. Os amigos e familiares com quem formei meus primeiros laços estão todos sepultados no velho cemitério. Entre eles, jaz uma donzela a quem talvez vocês conheçam pelo nome de Annabel Lee.

  Ainda me recordo nitidamente. Penso, na verdade, que os demônios sob o mar me amaldiçoaram de tal forma que jamais serei capaz de esquece-la. A mais bela - e a única - que já amei. Éramos simples e inocentes crianças, mas nos amávamos com um amor extraordinário, maior do que qualquer amor que se possa imaginar. Os mais velhos e mais sábios não escondiam sua inveja... E pensar que, após perdê-la, me tornei como eles. Minha juventude se encerrou cedo demais, assim como a vida de minha amada. A melancolia me transformou em um idoso esmaecido.

  Caminhando ao longo da enseada, percebo surpreso que as areias continuam tão brancas como quando sobre elas nos deitávamos, conversando desde o amanhecer até o crepúsculo e contemplando o céu claro com as gaivotas negras sobrevoando tranquilas. O céu acima de nós era pálido como sua pele, e as aves, escuras como sua cabeleira. Não me admira que tudo isso tenha perdido cada resquício de beleza quando ela foi tomada de mim.

  Fiquei sozinho, desprotegido diante da vida que deveríamos ter vivido juntos. Annabel seria minha noiva. Ela sempre permitia que eu acariciasse sua mão e sorria aquele sorriso triste. Seu toque já era tão suave e frio antes mesmo da morte beija-la.

  Eu precisava culpar alguém, portanto, culpei os serafins alados que nos observavam por entre as nuvens. Que nos detestavam pois sabiam que jamais amariam daquela maneira. Ela estava nesta mesma praia, esperando que eu viesse ao seu encontro naquela hostil manhã - e, céus, se eu estivesse lá, talvez, de alguma forma, meu amor poderia tê-la salvo. Pois um cruel nevoeiro surgiu sem aviso, e com ele, veio um vento impiedoso que gelou e matou minha bela Annabel Lee.

  Sua agonia ainda foi prolongada por três longos dias, e neste período eu não deixei sua cabeceira em momento algum, mas de nada adiantou. A hipotermia desencadeou uma pneumonia, e minha frágil amada jamais sobreviveria. 

  Ela chorava, molhando minha face com suas lágrimas geladas, e me fazia jurar: "Diga que sempre vai me amar. Diga que nossas almas estarão eternamente unidas. Diga que o amor é mais forte do que a morte. Diga, diga, diga." E eu dizia, tentando acreditar. Mas a morte, sempre misericordiosa, não demorou a leva-la, e eu, fui eu quem realmente abandonei a vida. Mesmo tão jovem, sabia que não encontraria conforto se não fosse ao lado dela.

  Por incontáveis noites, neste reino à beira-mar, visitei seu túmulo. Lá, eu recitava as poesias que ela tanto gostava, declarava meu amor, tentava conversar com ela. Talvez fosse minha loucura já aflorando, mas eu a ouvia respondendo. Eu vislumbrava Annabel entre as lápides. Eu a beijava e sentia o hálito fresco da morte. Sim, literalmente desejei a morte. Meu coração acalenta-se pois sei que hoje poderei, enfim, envolver minha amada em meus braços. Irei oferecer-lhe o que resta de meu fôlego, e talvez, com o sacrifício final, os malditos anjos permitam nossa união.

  O sepulcro está aberto, dentro dele, apenas escuridão e poeira; não há sinal do meu amor. Sorrio ao compreender: ela está seguindo em frente e quer que eu a acompanhe. Desta vez, não a deixarei esperando. À beira-mar, vejo seu espectro: cabelos negros ao vento, pele translúcida de tão pálida, o sorriso triste e solitário que ressurge para mim. Meu velho corpo vai ao chão, minha jovem alma se ergue e segura a mão de Annabel Lee. E juntos, finalmente, lado a lado, atravessamos a praia em direção ao infinito oceano. 

  O que é o amor, se não aquele vago limiar entre a vida e a morte?

2 comentários:

  1. Deuses dos poemas....quantos será que existem pelo mundo?

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  2. To quase chorando com isso. É uma das coisas mais lindas que já li. www.black-and-rebel.blogspot.com

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