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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Violadores de túmulos


  Era uma fria noite de outono. Uma neblina densa havia se espalhado por Londres, de forma que era impossível ver qualquer coisa além de um metro à frente. A névoa reduzia as pessoas à figuras vagas e fantasmagóricas, ou vozes incorpóreas.

  Em resumo, era uma perfeita noite de Halloween.

  Michael Blake, um garoto de 15 anos, teve um calafrio enquanto andava pela bruma com seu melhor amigo, John. Cedendo à insistência de John, ele conseguira enganar seus pais para que os dois pudessem - em um honrado ritual de Halloween - atravessar um cemitério no meio da noite. Convenientemente, havia em uma vizinhança próxima um cemitério supostamente assombrado.

  Típico do John ter uma ideia como essa, pensou Michael. Mas ele não iria reclamar. Uma das ideias de John, uma vez, salvara sua vida. De alguma maneira, John parecia sempre saber a coisa certa a fazer, mesmo que parecesse absurda na hora.

  Então, através da neblina, as grades do cemitério subitamente surgiram diante deles - velhas e abandonadas. O ferro havia enferrujado até ficar marrom, de forma que elas pareciam pedaços deformados de madeira pregados juntos. Na verdade, todo o lugar estava em péssimo estado; as autoridades não se preocupavam com ele e os parentes dos mortos não reclamavam.

  O cemitério está esquecido e desprezado, pensou Michael, talvez, assim como as almas de seus residentes. Então ele repreendeu a si mesmo. Por que estava deixando que pensamentos tão estranhos invadissem sua mente?

  John chutou o portão do cemitério, que se abriu com um gemido alto de protesto. Michael olhou ao redor nervosamente, mas ninguém parecia tê-los ouvido.

  Enquanto eles estavam entrando, John parou de repente.

  - Eu quase esqueci. - disse ele casualmente. - Precisamos tomar cuidado com os violadores de túmulos.

  - Violadores de túmulos?

  - Os mais pobres da pobreza de Londres. Em geral, eles não têm trabalho ou moradia. Ficam roubando dos mortos. Eles roubam as joias, os relógios, até mesmo a roupa que o cadáver veste, se estiverem desesperados. E costumam estar armados com facas.

  Muito legal da parte dele só me contar agora. Michael teve outro arrepio. Mas novamente, ele não reclamou, e seguiu John cemitério adentro.

  Isso é tão clichê, pensou Michael. Dois amigos encarando um desafio de Halloween se deparam com muito mais do que esperavam. Ele podia ver aquela frase na contracapa de uma dúzia de filmes trash de terror.

  John chutou uma pedrinha. Ela rolou e foi parar na frente de uma lápide antiga. Apesar da neblina,  Michael conseguiu decifrar as palavras escritas nela:

Aqui jaz FRANK JONES.
Morreu como viveu: em busca da justiça.

  Ele deve ter sido um policial, pensou Michael. Era uma ideia estranhamente reconfortante. 

  Eles continuaram seguindo pelo cemitério. Michael tinha de admitir que estava ficando irracionalmente nervoso, embora tivesse deixado de ter medo de fantasmas há muito tempo. Era o próprio lugar que o assustava. Diferente de um cemitério típico, havia árvores plantadas em pontos aparentemente aleatórios, gerando sombras compridas na luz enevoada da lua. Pássaros piavam e se comunicavam entre os galhos. 

  A ideia por trás do plantio das árvores era de que os restos mortais se ergueriam para originar vida nova. Porém, aquelas plantas nunca haviam sido podadas, e naquela hora da noite, elas apenas aumentavam a inquietação que alguém naturalmente sentiria em um cemitério. Elas faziam com que todo o local parecesse selvagem e sufocante. Michael imaginou aqueles galhos se esticando para agarrá-lo...

  Ele teve outro arrepio e arrastou-se para frente, tentando acompanhar o passo de John, que tinha ficado totalmente em silêncio. John possuía essas mudanças de humor - ele poderia estar feliz em um momento, e enfadado logo depois. Naquele instante, ele estava deixando Michael nervoso.

  Não seja idiota, disse ele para si mesmo. Era o cemitério que o estava assustando, não John. Ele não tinha motivo para ter medo do John, ou mesmo para desconfiar dele.

  Diante dele, John parou de repente, e apontou para uma área alguns metros à frente. A neblina abrandou e Michael viu uma figura agachada. Parecia que estava cavando o chão.

  Um violador de túmulos, pensou Michael. O que John havia dito? A maioria deles carrega facas. Eram sem-teto, desesperados. E se esse homem tentasse roubá-los, ou matá-los? Ele tentou puxar John para perto de si. Mas John o empurrou.

  - Quem vem lá? - disse ele em voz alta, dando um passo corajoso adiante. Michael hesitou, mas o seguiu.

  Enquanto avançavam, o violador de túmulos teve um sobressalto súbito. Ele levantou e puxou uma faca.

  - Não tinha te visto aí, rapaz. Um bom rapaz como você não deveria estar andando por aí tão tarde da noite.

  Ele caminhou lentamente na direção de Michael, fazendo movimentos circulares no ar com sua faca.

  Michael tinha os olhos fixos na lâmina - alguns centímetros de metal que poderiam representar sua morte. Ele estava paralisado de medo.

  Mas quando o violador de túmulos o alcançou, ele se encolheu, caindo na direção de Michael. Michael o segurou para interromper sua queda, e o violador se apoiou nele como um peso morto. Ele podia ver os olhos estranhamente vidrados do homem, sentir seu hálito podre. Então, ele o empurrou para longe, e o viu cair e ficar imóvel como se estivesse morto.

  Diante de Michael estava um policial. Claramente, tinha sido ele quem derrubara o violador de túmulos. Michael suspirou de alívio, então arquejou quando olhou direito.

  O rosto daquele homem era branco-leitoso de tão pálido, com um nariz torto e dois olhos fundos que eram negros como breu. De alguma forma, não parecia totalmente humano. O policial era desumanamente magro. Cadavérico era a palavra que vinha à mente.

  - Foi quase, né?

  Michael apenas assentiu.

  O policial avançou para ficar bem na frente de Michael e franziu o cenho para ele.

  Michael viu o crachá dele, e arquejou novamente.

  Estava escrito "F. Jones."

  - O que exatamente você está fazendo aqui? - perguntou Jones.

  Michael ficou mudo, encarando-o. Seu coração estava disparado - como se estivesse prestes a explodir do peito. Parecia impossível, mas aparentemente ele havia sido salvo do violador de túmulos pelo fantasma de Frank Jones.

  Michael se virou para John, sentindo a garganta seca.

  John tinha ficado completamente branco.

  - Você explica. - disse ele, antes de dar as costas e sair correndo pela neblina.

  Eu devia ter previsto, pensou Michael, observando o amigo.

  Oficial Jones acompanhou a vista de Michael na direção da neblina. Mas não havia qualquer sinal de John. Era como se a bruma o tivesse engolido.

  Jones fez uma careta, e então se virou para Michael.

  - Então, menino? Estou esperando uma resposta. - disse ele. Ele falava de uma forma suave, quase sussurrando. - O que você está fazendo aqui? Apenas violadores de túmulos vêm aqui à essa hora da noite. É um dos lugares que eles costumam assombrar.

  "Assombrar." Interessante escolha de palavras.

  Michael tremeu. Ele estava prestes a começar a falar quando Jones o interrompeu.

  - A não ser... a não ser que você seja um violador de túmulos.

  Jones sorriu. Seus dentes eram amarelos e podres. Decadentes. Agora Michael tinha certeza. O Oficial Jones era um fantasma.

  - Você vai ter de vir comigo. - continuou Jones. - Vai, sim.

  Ele sorriu novamente, e lambeu seus lábios cinzentos e ressecados com sua língua cinza.

  Michael estava aterrorizado. Jones achava que ele fosse um violador de túmulos. E o que queria dizer com "você vai ter de vir comigo?"

  - Eu... Eu não irei a lugar nenhum com você! - gritou Michael. - Isso é um erro! Eu não sou um violador de túmulos!

  Mas era inútil argumentar. Michael podia ver que Jones não acreditava nele. Um fogo maligno se acendera em seus olhos.

  - Guarde seus protestos para mais tarde, menino. Você vem comigo, para onde você pertence!

  E Jones levou a mão até o cinto. Michael viu os dedos dele se fecharem em torno de sua arma. Jones ia matá-lo!

  E então, sem parar para pensar, Michael agiu.

  Ele moveu as pernas para frente, caindo como se houvesse escorregado em algo. Jones estava bem na sua frente, e suas pernas atingiram os pés dele. Era a última coisa que Jones esperava. Ele caiu bem em cima de Michael, e nisso, Michael o socou onde mais dói. Jones uivou de dor, e Michael arrancou a arma dele da bainha.

  Preciso me mover rapidamente, pensou Michael. Antes que Jones pudesse reagir, Michael o empurrou, apontou a arma para seu rosto e puxou o gatilho. Sangue jorrou da cabeça de Jones e respingou nos olhos de Michael, mas ele não se importou. Estava vivo! Havia conseguido. Daquela vez, salvara sua própria vida sem precisar da ajuda de John. Ele deitou no chão, rindo de alívio.

  Então ele ouviu passos atrás de si. Ele levantou, mas antes que pudesse se virar, já havia sido profissionalmente algemado e imobilizado. Era outro policial. Ele ficou parado olhando para Michael, o rosto pálido. Então, sem dizer uma palavra, ele levou Michael até a delegacia mais próxima. O garoto foi levado até uma cela. Pelo que pareceram horas, ele foi deixado sozinho. Então o policial que o prendera entrou.

  - O que você fez?!

  E Michael lhe contou tudo - sobre o desafio de Halloween, o túmulo de Frank Jones, o violador de túmulos e o fantasma.

  O policial o encarou silenciosamente. Então ele pressionou uma campainha, e os pais de Michael entraram. Pareciam estupefatos, chocados. Era como se tivessem ouvido tudo.

  - Michael, como você pôde fazer isso? - sua mãe perguntou entre soluços.

  - Eu tive de me proteger.

  - Por que você deixou a casa sem nos avisar? - gritou seu pai.

  Michael o olhou com tristeza. Ele havia reagido de maneira similar - da última vez.

  - Foi ideia do John. - disse Michael.

  - Você... Você disse John? - perguntou sua mãe. Ela pareceu ter ficado ainda mais pálida do que já estava.

  - É, mãe. Ele me falou para ir com ele para o cemitério. Ele me contou a respeito dos violadores de túmulos.

  - Não, Michael! - berrou o pai, puxando o cabelo. - Eu lhe contei sobre os violadores de túmulos uma semana atrás!

  Ele deixou a sala junto com a mãe de Michael e o policial. Michael podia ouvir trechos de sua discussão acalorada do lado de fora.

  - ...deixar ele sair de casa! - dizia o policial.

  Michael se esforçou para ouvir a resposta de seus pais.

  - ...estabilizado... eles nos permitiram... por alguns dias... nós nunca sonhamos...

  - Vocês deveriam. - disparou o policial. - Eu perdi um bom amigo hoje.

  E então houve apenas silêncio por algumas horas.

  O policial entrou na sala novamente. Ele agarrou Michael e o conduziu para fora da delegacia, enfiando-o em um carro. Em seguida, o levou para o último lugar onde ele queria estar. O lugar que havia sido seu lar por alguns anos, até pouco dias antes.

  Michael foi levado até uma cela - a cela dele, no fundo da instituição.

  Eles tentaram, novamente, alimentá-lo com suas mentiras. Eles lhe disseram que Frank Jones havia sido um advogado criminal que morrera de ataque cardíaco enquanto interrogava um assassino.

  Eles lhe contaram que o policial se chamava Francis Jones. Ele era um oficial jovem e entusiasta. Quando confrontou Michael, estava pegando suas algemas, não sua arma.

  E Michael o matara.

  É claro que Michael não acreditou. Seis anos antes, eles já haviam mentido. Disseram-lhe que John, seu melhor amigo, era imaginário! Aquilo era mentira! John era real, embora fosse um fantasma. Apenas Michael podia ver fantasmas. Por isso ele vira o fantasma de Frank Jones naquela noite.

  Seis anos antes, John salvara a vida de Michael avisando-o que seu primo adolescente, David, estava planejando matar a ele e a seus pais. Michael lembrava-se do alívio intenso que ele sentira quando fechara as mãos em torno do pescoço de David e o estrangulara até sua vida se esvair - o mesmo alívio que sentira quando atirara em Jones.

  E o prenderam por ter matado David, quando, na verdade, ele estava salvando sua família! E agora ele estava de volta àquele buraco do inferno por "matar" Jones. Malditos!

  Mas Michael sabia a verdade. O policial no qual ele atirara era o fantasma de Frank Jones. É claro que atirar em um fantasma não era crime! E John... John não era imaginário. Michael sabia que ele o ajudaria a escapar daquele lugar... Algum dia...

  E Michael riu e riu, sua gargalhada mesclando-se às de algumas outras almas condenadas a passar suas vidas na prisão de segurança máxima de Londres para criminosos insanos.

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