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sexta-feira, 31 de março de 2017

A Festa das Bonecas


Faz alguns meses que eu e meus pais nós mudamos para um imenso sobrado num bairro calmo e tranquilo. O andar de cima do sobrado fora alugado para nós enquanto o térreo se trata de uma loja/atelier/museu de bonecas.

Os moradores nos receberam muito bem, todavia, nos alertaram que a casa em que vivemos é, possivelmente, assombrada. Segundo eles, todos os antigos moradores se mudaram em menos de um ano, acometidos por doenças misteriosas e que, alguns deles, vieram a falecer. 

Como meu pai não é supersticioso e minha mãe nem religião possui, não deram ouvidos a estes boatos e até agora tudo está bem, nada de ruim ou anormal nos aconteceu e, quanto a mim, também fui a favor de ficarmos, porque amo a loja de bonecas. É realmente muito raro ter clientes, por isso o dono do local, um senhor de idade, criador inclusive de algumas das bonecas expostas, sempre permite que eu fique na loja e até deixa que eu brinque com algumas bonecas.

A loja é um lugar meio sombrio. E quando digo “sombrio” me refiro ao sentido literal da palavra, ou seja, por ter ausência de luz. No andar de cima a luz natural entra normalmente, porém, no térreo, a luz parecia nunca ser capaz de penetrar. Mesmo a parte elétrica sempre sofre problemas, volta e meia as lâmpadas e aparelhos eletrônicos queimam, mas o senhorzinho parece não se importar, simplesmente os troca e segue em frente. Apesar das bonecas ficarem amontoadas e bagunçadas por todas as partes, desde o chão até os armários lotados de partes delas e de roupas para elas, no pedaço do atelier, o senhor sempre mantém tudo limpo. Já na parte da loja e museu, elas geralmente ficam dentro de vitrines, tudo organizado. Mas não gosto destas bonecas, pois elas parecem... tristes, como se não estivessem felizes por estarem presas ali.

Sobre as bonecas... todas elas são tão lindas! Algumas têm traços tão humanos, outras são tão altas quanto manequins, algumas são mais fantásticas, com asas de borboleta ou asas brancas de pássaro, e com cabelos e olhos de cores não naturais, outras são mais abstratas, como se fossem quimeras com partes humanas. Mas seja quais forem as características, todas são lindas!

- De todos os outros moradores do andar de cima que já conheci, você é única que gostou destas bonecas – disse-me certa vez o dono da loja.
- Como assim, a única? Ninguém mais gostava delas? Impossível!

- Talvez alguns até achassem bonitas. Mas, a maioria tinha medo. Bonecas, por terem aparência humana, causam desconforto em algumas pessoas. Nunca teve uma sensação ruim perto de uma boneca?
- Não, não. Por que haveria de ter? Elas são lindas, e minhas amigas.

- Neste caso, você estará bem – finalizou assim a conversa com um sorriso enigmático.

Bom, eu sei que no começo havia dito que nada de anormal havia acontecido no tempo em que moramos naquela casa. Mas isso não é bem verdade. A despeito da veracidade, um ocorrido era frequente durante a noite. Eu era a única que presenciava tal fenômeno.

O que acontecia é que ouvia vozes animadas conversando entre o ápice da noite e madrugada, não dava para ouvir o que diziam, era como quando se ouve uma língua familiar e você sabe dizer que se trata de tal língua, mas não sabe distinguir as palavras. E outros sons mais, como se estivessem em êxtase, se divertindo muito em uma festa ou algo assim. Isso era algo frequente, acontecia quase todas as noites. Quando questionei meus pais sobre o evento, eles diziam não terem ouvido nada e simplesmente me disseram para não me preocupar que alguém de alguma vizinhança próxima deveria estar dando uma festa de arromba.

Bom, ninguém dá uma festa quase todos os dias, e nosso bairro era muito tranquilo, então qualquer barulho assim seria audível para várias pessoas. Por isso questionei, casualmente, outros moradores, e eles também disseram não ouvir nada.

Por o som parecer muito próximo, em uma ocasião, abri a janela do meu quarto para espiar a rua. Não havia uma alma viva sequer. Outro dia até cheguei a deixar a casa para ver se conseguia enxergar alguma coisa. Novamente, nada. Os dias se passavam e o som ficava cada vez mais alto. Eu já não conseguia mais dormir e a falta de sono começava a afetar minha vida. Eu precisava saber o que estava acontecendo.

Certa noite, novamente, saí de casa para espiar a rua mais de perto. E foi aí que percebi que uma luz vinha da loja/atelier/museu de bonecas. Achei estranho, não só por causa do horário, mas por ser uma luz muito forte. Uma luz que jamais foi ou seria usada naquele ambiente. Intrigada, entrei no atelier. O dono da loja sempre deixa aberta a porta de anexo entre a minha casa e a loja dele, “para casos de emergência”, segundo ele.

O que vi foi tão surreal quanto um quadro de Salvador Dalí.

Eu estava certa sobre ser uma festa. E que festa! O problema era os seres que a conduziam: as próprias bonecas.

Elas conversavam como se suas bocas fossem costuradas, bom a maioria nem tinha uma boca de fato, dançavam, umas emitiam uns grunhidos que eu imagino que fosse uma tentativa de canto, e ainda saltitavam e davam piruetas. Elas não se importaram com a minha presença, de nada isso as atrapalhou. Umas poucas até se aproximaram de mim como se quisessem que me juntasse a elas...

Eu estava assustada demais para me juntar àquela dança sobrenatural. Mas, lembrando da conversa que tive com o dono, achei melhor não ofendê-las. Foi meio estranho dizer a elas que voltaria outro dia, pois estava muito cansada. Tecnicamente nem podia mais chamá-las de “objetos inanimados”, mas tão pouco elas estavam vivas. Havia algo muito errado na maneira em que “viviam”...

Voltei ao andar de cima apavorada. Não é como se eu achasse que elas pudessem me fazer algum mal diretamente, elas mais pareciam querer que eu fizesse parte de seu festim... Mas, com certeza, havia algo de completamente sinistro naquela situação. 

Mesmo com aqueles olhos foscos, com uma profundidade infinita, ainda pairando sobre minha mente, não tive dificuldade em pegar no sono. Foi natural e ao mesmo tempo induzido, me joguei na cama de exaustão e em poucos minutos estava adormecida. Dormi tão bem como há dias não conseguia.

No dia seguinte, voltei à loja de bonecas durante o dia. Parecia normal, como sempre. Não havia nada fora do lugar, porém, agora eu olhava para as bonecas com outros olhos. Elas pareciam me observar, seus olhos acompanhando cada movimento meu, suas bocas parecendo se curvar em um sorriso travesso. Claro, quando as encarava por tempo suficiente podia perceber que nada em suas expressões mudava. Eu poderia ter acreditado que o evento da outra noite não passou de um sonho... 

A incerteza ainda pairava sobre mim, então qualquer que fosse a resposta, antes tinha que falar com o senhor dono da loja e esclarecer minhas dúvidas.

Contei a ele sem rodeios o que vi na noite passada. Ele não me chamou de doida e nem pareceu surpreso. Por mais que eu não duvidasse da veracidade do que me aconteceu, não queria que ele de fato tivesse confirmado que foi real.

- Elas... estão vivas? – tive que perguntar, pois não conseguia pôr meu pensamento de outra forma. 

Como poderiam se mexer, dançar por aí, se não fossem seres vivos?

- Nem vivas. Nem mortas. Bonecas não são seres “vivos”. Bonecas são vazias. Você sabe o que as preenche?
- Algodão? Palha? Algum tecido que se põe dentro delas para que tenham firmeza. – Foi uma resposta idiota, é claro que não era isso ao que ele se referia. Porém, um lado meu ainda custava a acreditar que elas pudessem ser algo mais sinistro do que eu poderia ter imaginado.

O senhor deu uma risada com excessivo escárnio.

- Se elas fossem meros objetos, sim. Mas não são, elas são “invólucros” vazios. São o que os alquimistas chamavam de “homúnculos”. Por terem forma humana o que as alimenta é a “anima” humana. Essência, por assim dizer.
- Então a doença misteriosa dos outros moradores...

- Sim. As bonecas estavam sugando suas energias vitais, fazendo com que adoecessem, ficassem anêmicos, insones, entre outros sintomas. Se não tivessem ido embora antes que fosse tarde demais, provavelmente elas teriam sugado tanta energia, que eles estariam mortos agora.
- Por que elas não afetam o senhor? O que acontece se elas não tiverem de onde tirar energia? Como elas fazem isso?

- Sou uma espécie de guardião delas. As exponho e as vendo para que possam sugar a “anima” de quem as vê. Não se preocupe, apenas uma visitação ao museu uma vez por semana não afeta em nada a pessoa. E levar uma boneca dessas para casa... demorará anos e anos até que alguém morra por falta de energia vital. Mas, como no andar de cima as pessoas que veem morar aqui passam a noite inteira dormindo ali inocentemente, o processo é mais rápido e as bonecas adquirem uma dose extra de energia. É por isso que você as viu dançando. Estavam tão cheias de energia que foram gastar de forma festiva.
- Isso é horrível...

- Não, não é. É apenas a natureza delas. Achei que compreendesse.
- O que vai acontecer comigo e meus pais se continuarmos aqui?

- Se eu fosse você, estaria mais preocupada consigo mesma. Seus pais podem fugir sempre que quiserem. Já você... Eu estou velho. Alguém precisa se tornar o “guardião” em meu lugar.
- Espere... Não... Não! Não quero guardar estas bonecas! Elas são malignas!

- Sinto muito, não posso fazer nada. É seu destino. É melhor aceitá-lo do que ficar esperando que elas vão até você seja lá onde esteja, durante a noite.
- Você é insano! – sem dizer mais nada, sai correndo dali.

Ainda naquele mesmo dia, tentei convencer meus pais a se mudarem dali. Elas estavam irredutíveis. Então contei a eles sobre o que vi e o que aconteceu aos outros moradores, óbvio, céticos como eram, não acreditaram em mim...

Uma semana depois, o senhor morreu. Sem família ou parentes, o governo cedeu ao testamento do velho e deixou que minha família ficasse com toda a casa e, consequentemente, com a loja de bonecas. Pedi que meus pais ao menos se desfizessem das bonecas. Eles recusaram. Eles nunca abriam o museu ou a loja, mas não queriam se livrar das bonecas em memória ao ex-proprietário. 

Não era uma desculpa convincente. Havia algo de anormal nesta situação...

Um dia, quando já era maior de idade e não aguentava mais as noites mal dormidas e permeadas de pesadelos, os maus estar que me assolavam e a doença misteriosa que assolou minha mãe e a fez ficar de cama, ainda sim se recusando a deixar a casa e se tratar num hospital, desci enfim a loja. 

Fazia anos que ninguém entrava ali. Estava suja e muito mais escura do que o normal, mesmo assim, tudo continuava exatamente nos mesmos lugares de que me lembrava como se nada tivesse mudado durante todos aqueles anos. Era de noite, porém, as bonecas estavam quietas, quietas demais. Todas as noites ainda podia ouvi-las festejando, todavia, naquela noite pareciam estar apenas a me observar no silêncio como se soubessem o que eu estava prestes a fazer e queriam se certificar até onde eu iria. 

E eu fui longe. Longe demais.

As cobri com álcool e cada cantinho do atelier e ateei fogo. Tudo entrou em combustão instantaneamente. Eu permaneci ali no fogo, queimando junto com elas, enquanto as fitava cantarolando e dançando em meio às chamas sem se abalarem, em um festim infernal.

Tanto eu quanto as bonecas sobrevivemos. A diferença é que no dia seguinte tanto elas quanto sua moradia estavam intactos enquanto eu tive meu corpo completamente queimado fadada a viver com o corpo e o rosto cobertos para sempre. O andar de cima foi totalmente consumado pelo fogo, matando meus pais. 

E assim fiquei definitivamente sozinha naquela casa com as bonecas.

Após vários meses no hospital, voltei à casa e enfim aceitei meu destino. Ainda hoje fabrico bonecas enquanto recebo pessoas que veem de todas as partes do mundo para comprar ou ver minhas bonecas. Ou pela curiosidade que meu caso trouxe a elas, por ter sobrevivido a um incêndio e ter sido “salva” pelas bonecas. Hoje, a casa tem 3 andares e até conta com funcionários. Ninguém conhece meu rosto ou minha verdadeira história, mas todos conhecem meu algoz de fabricante dos mais diversos tipos de bonecas e isso é tudo que sou.

Eu ainda sou convidada todas as noites para dançar junto às bonecas em seu cortejo macabro. E sempre digo a elas que em breve me juntarei definitivamente. “Ou você dança junto a elas ou elas dançam ao redor de sua discórdia” foram as últimas palavras daquele senhor para mim e ele estava certo. 

Minha última obra-prima será uma boneca de tamanho real com feições realisticamente humanas. As bonecas precisam encontrar logo um novo guardião, pois logo estarei dançando junto a elas em suas festas noturnas...

Escrito por: Bruna Emily Gonsalez
De: Ler Pode Ser Assustador

3 comentários:

  1. muito legal, criatividade 10, o conte pego você pela mão e quanto se menos espera a estória chega ao fim e fica o gostinho de quero mais. Parabéns a essa autora criativa e cativante.

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