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segunda-feira, 6 de julho de 2015

A Alma Impressa - Parte 3 (Final)


Antes de iniciar a leitura, certifique-se de ter lido as partes 1 e 2.

  O dia transcorreu caótico. A colega de Marília precisou ir à uma emergência para levar pontos no talho tão profundo que deixava alguns ossos de seu dedo expostos. As autoridades do colégio tentaram encontrar alguma prova para culpar a pobre Marília pelo acidente, mas não havia nada. Aquele era apenas um livro, sem nenhum tipo de objeto cortante oculto entre suas páginas. Mesmo assim, ela recebeu uma suspensão que duraria até que "a situação se esclarecesse".

  Ao menos, lhe devolveram o livro, o qual se encontrava levemente amassado após tudo pelo o que passou. Marília estava tão angustiada e assustada que apenas o enfiou bem no fundo de sua mochila e o levou direto para casa, evitando sequer olhar para a capa. Mas, bastaria uma olhada para que ela percebesse uma mudança sutil. 

  Aquela ilustração do espelho antigo havia mudado um pouco. Em seu reflexo, que antes parecia estar vazio e completamente embaçado, era possível vislumbrar uma imagem não muito nítida, mas ainda assim arrepiante. Lembrava a silhueta de uma menina, caminhando em direção ao outro lado, como se fosse simplesmente sair.

  Em casa, Marília deitou-se em sua cama, querendo apenas dormir e poder fingir que tudo aquilo não foi nada além de um pesadelo. Mas ela sentia-se inquieta demais, preenchida por aquela mesma agonia estranha e insistente de quando falou com Adelaide pela primeira vez, como se alguma força invisível a atraísse. Ela sentou sobre os lençóis gelados e olhou pela janela. Estava anoitecendo e as primeiras estrelas começavam a pontilhar o céu índigo. Mas já...? 

  Marília baixou os olhos, sentindo a mente confusa, e reparou em uma forma conhecida ao pé da cama. O maldito livro. Ela não lembrava de te-lo deixado ali, mas já nem se importava mais. Iniciou-se uma guerra dentro dela, entre seu lado racional, que lhe dizia para se livrar daquele livro o mais rápido possível, e provavelmente estava certo, e um desejo inexplicável de dar um "último adeus" a Adelaide. Talvez ouvir suas razões e perdoa-la pelo que ela fez. Afinal, ser agarrada daquela maneira, tão bruscamente, devia doer. Quem sabe a garota literária estivesse apenas... Se defendendo?

  Por fim, Marília esticou-se para alcançar o livro e o arrastou para perto de si. Apoiou-o cuidadosamente sobre sua perna cruzada e abriu a capa com lentidão demais, demonstrando um pouco de medo, pois não tinha ideia do que iria encontrar ali. Talvez... Talvez ela tivesse imaginado tudo aquilo. Mas o ferimento em sua colega havia sido bem real. 

  Não sabia se devia ficar aliviada ou assustada com o que encontrou.

  - Desculpe... Desculpe por não me arrepender nem um pouco. Você viu a cara dela? - Adelaide sorria largamente diante do choque da amiga.

  - Aquilo que você fez... Foi muito errado. Teve consequências terríveis. Eu fui suspensa, e ela se machucou de verdade. - Marília tentava manter o tom firme, mas já estava querendo chorar de novo.

  - Foi porque ela mereceu, aquela idiota. - Adelaide falava com um ódio maior do que o necessário. Ninguém podia tocar em seu livro sem consentimento. Ninguém. - Ei... Por que você está chorando?

  - Porque estou muito decepcionada com você. Apenas por isso. Pensei que você fosse minha amiga. Achei... Achei que você fosse legal. Do bem. - As lágrimas agora corriam soltas, assim como as palavras amarguradas.

  - Mas eu... É a minha natureza. - Adelaide respondeu, simplesmente. Ainda não estava disposta a pedir desculpas. Seus olhos tinham um brilho diferente... Quase ameaçador. 

  - Se essa é a sua natureza... Você é cruel! Muito cruel!

  Adelaide apenas deu de ombros. Em seguida encarou Marília, sem piscar.

  - Mas você ainda quer ser minha amiga, apesar de tudo, não é?

  - É claro que não. - Marília sussurrou, e agarrou a capa do livro com força, determinada a fecha-lo para sempre.

  - Então vai ter que ser assim... - Adelaide soltou uma gargalhada tão alta que pôde ser ouvida até do outro lado, fazendo com que Marília estremecesse e largasse o livro.

  Marília estava completamente paralisada. Sabia que se encostasse naquele livro, poderia ter o mesmo destino de sua colega, ou pior. O que quer que Adelaide fosse, aquela entidade maligna estava furiosa e incontrolável. Tudo o que a garota podia fazer era observar o livro, esperando por algo que sua mente não conseguia sequer imaginar...

  As páginas começaram a mover sozinhas, em velocidade vertiginosa, e ela pôde ver toda a sua conversa com Adelaide tornar-se um borrão difuso de tinta escura. Até que o livro abriu-se bem no meio, ainda em seu colo, para exibir uma única sentença que ocupava as duas folhas inteiras. Estava escrita em uma tinta vermelha e fresca que lembrava... Sangue?!

AQUI TERMINA A SUA HISTÓRIA. AQUI CONTINUA A MINHA.

   Então, o livro fechou-se com um estrondo. Com olhos arregalados, Marília assistiu enquanto a capa se movia e distorcia. Ela viu uma garota correndo em sua direção, de dentro do espelho, e teve certeza de que se tratava de Adelaide. Mas ela não era como havia pensado... 

  As suas feições eram de uma brancura perturbadora e cobertas de letras e sinais de pontuação, como se ela fosse feita de papel impresso. Seus olhos negros e sem pálpebras eram a única forma distinguível em meio às palavras, e estavam fixos em Marília. Quanto mais ela aproximava, mais clara ficava sua imagem aterrorizante. 

  Até que Adelaide estendeu sua mão, a qual simplesmente rasgou a fina cartolina que separava o mundo literário do mundo real. E agarrou o braço trêmulo de Marília, puxando-a sem piedade para o lugar enevoado e solitário de onde saíra.

***

  No dia seguinte, uma jovem entrou na biblioteca pública, carregando um livro antigo debaixo do braço. Sua beleza chamava a atenção de todos pelos quais passava. Ela tinha um longo cabelo negro, cacheado e sedoso, pele morena, rosto angelical, e trajava um vestido quadriculado que parecia ter vindo de outra década.

  Ela caminhou alegremente até uma parte esquecida do lugar, mas que conhecia muito bem: A sessão de terror e suspense. Procurou por uma lacuna vazia e enfiou o livro que trazia dentro dela. Era um livro esquisito: Todas as suas páginas pareciam estar em branco. Ele tinha a capa preta e desbotada, e a única informação contida nela era o título: "Marília", em letras de fôrma brancas.

  Depois de cumprir sua tarefa, a garota apressou-se em ir embora, sem desviar o olhar de seu caminho nem trocar sequer uma palavra com ninguém. Adelaide não queria perder mais nenhum minuto de sua preciosa vida. Estava tão feliz. Ainda que fosse às custas dos outros.

  
  

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